[1] Patrícia Bastos - Zulusa

Patrícia Bastos - Zulusa
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Patrícia Bastos

Estou na comunidade quilombola Curiaú. Paisagem de beleza incomparável. É dia de festa. Tia Chiquinha me explica a diferença entre batuque e marabaixo, os dois ritmos mais tradicionais do Amapá. Batuque é bandaia, pode dançar sorrindo, com alegria. Marabaixo é lamento, com o arrastar dos pés no chão lembrando os escravos acorrentados. Quem me trouxe até aqui? Uma caboca chamada Patrícia Bastos. E nem precisei de barco, navio ou avião. Nem saí de casa. Apenas ouvi ‘Zulusa’ e ela me apresentou “um outro Brasil, que o Brasil desconhece”.

Para quem está longe dessas fortes características culturais, o quinto disco da cantora macapaense pode parecer apenas mais um trabalho exótico e inusual. Engano. O grande mérito de ‘Zulusa’ - que tem em seu título a representação do português, do indígena e do africano (o povo brasileiro) - é transformar regional em universal. Você provavelmente não sabe o que é o quitum do amassador e o tracatá do dobrador, mas quando ouvi-los não terá uma reação de estranheza. São sons seus, e só não tocam na música que você ouve porque o Brasil é um grande país que está pequeno demais.

O canto de Patrícia Bastos é afinado como o de um passarinho. Só para constar: essa não é uma observação minha. Ouvi de Dante Ozzetti, conceituado compositor, produtor e incansável pesquisador da música brasileira. Dante tem um papel fundamental no disco, mas falo disso daqui a pouco. Se tem algo que impressiona tanto quanto a riqueza sonora de ‘Zulusa’ é a desenvoltura de Patrícia como intérprete. Seu modo de cantar é gracioso e de uma elegância que atrai sem qualquer esforço. Uma voz que precisa ser mais ouvida nesse país.

Além do batuque e do marabaixo, também compõem esse trabalho ritmos como o cacicó (fruto da fronteira com as Guianas), o zouk, a embolada, a cúmbia, a guitarrada (alô, Manoel Cordeiro!) e o fado. Muito trabalho foi necessário para tornar essa mistura natural e satisfatória. Atento às modulações, Du Moreira dividiu a produção com Dante Ozzetti, também responsável pela direção musical e pelos arranjos de ‘Zulusa’. A percussão do Trio Manari foi outro ponto decisivo. Algumas das peças usadas por eles: xequerê, guizo, terrabuco, matraca, curimbó, ganzá, djembê, candira, conga de madeira, bilha e bongô, além da caixa de marabaixo, claro.

O esforço dos produtores e o capricho com os instrumentos fez de ‘Zulusa’ um registro uniforme e inovador. Pouco adiantaria resgatar se não houvesse nada de novo para mostrar. Encontramos letras cantadas na linguagem de corruptela, interessantes inserções eletrônicas, texturas sonoras belíssimas e, na última faixa, apenas voz e piano, num momento sublime. Um trabalho que deve servir de referência nos próximos anos.

Com parcerias certeiras e um repertório fantástico, Patrícia Bastos lançou o melhor disco de 2013 na música brasileira.

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Patrícia Bastos - Zulusa

1. Canoa Voadeira (Allan Carvalho e Ronaldo Silva)
A voz de Patrícia convida para um passeio pelo rio-mar. Logo na faixa de abertura, encontramos uma percussão marcante em primeiro plano.


2. u amassu i u dubradú (Dante Ozzetti e Joãozinho Gomes)
Um batuque cantado na linguagem de corruptela. Amor se torna amur, ao som do quitum e do tracatá. Os violões de Dante Ozzetti são um espetáculo à parte.


3. Zulusa (Celso Viáfora e Joãozinho Gomes)
Na aglutinação de Zulu + Luso, Patrícia canta: “Nasci do plim... duma fusão”. Agora aparece a flauta de Marta Ozzetti, mais uma presença boa de ser notar.


4. Linha Cruzada (Leandro Dias e Carla Cabral)
Uma das faixas mais surpreendentes do álbum ressalta o canto e a influência negra no Amapá. Destaque para o acordeom de Toninho Ferragutti.


5. Boi de Rua (Floriano e Jorge Andrade)
“Quem vai no boi vai se encantar”. Música que venera uma das principais tradições da Amazônia, que “faz a gente ser gente e não raça”.


6. Incantu (Enrico Di Miceli e Joãozinho Gomes)
Novamente a linguagem de corruptela para cantar uma lenda indígena. Os instrumentos acompanham o canto e o efeito é formidável.


7. Miss Tempestade (Vitor Ramil e Ricardo Corona)
Fado belíssimo levado com violino e guitarra portuguesa. “Dói em mim uma dor estranha, e não há osso, músculo, nervo que me diga seu nome”.


8. No Laguinho (Paulo Bastos)
Patrícia agora nos leva aos Campos do Laguinho, bairro para onde foram transferidos os negros que moravam no centro de Macapá.


9. Causou (Dante Ozzetti e Luiz Tatit)
Cacicó de paulistas com a guitarra de Manoel Cordeiro. Ritmo dançante e uma bem humorada história de uma pantera namoradeira.


10. Mais Uma (Felipe Cordeiro e Júnia Vale)
Felipe Cordeiro compôs a letra especialmente para o disco e também participou da gravação com voz, guitarra e baixo. “Te garanto, moço, valho por cem”.


11. Mal de Amor (Val Milhomem e Joãozinho Gomes)
A melhor música de 2013 é uma lamentação de marabaixo. Uma história de amor, dor, choro, brilho. Emocionante.


12. Rodopiado (Ronaldo Silva)
“Veneno pinga da boca daquela cobra”. Lendas e crendices da Ilha do Marajó num canto apressando e com a participação especial de Marcelo Pretto.


13. O Batuque (Amadeu Cavalcante e Joãozinho Gomes)
Com samples de instrumentos acústicos de percussão, Du Moreira garante uma interessante roupagem eletrônica para essa faixa.


14. Ribeirinho (Guinga e Paulo César Pinheiro)
Patrícia resgatou essa bela canção, quase perdida e nunca gravada, e a escolheu para fechar o disco com apenas sua voz e o piano de Heloísa Fernandes. Sublime.



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