[1] Leo Cavalcanti - Religar

Leo Cavalcanti - Religar
FOTO: CAROLINE BITTENCOURT

Um mentor transcendental
Leo Cavalcanti e o melhor disco nacional de 2010

Um inteligente emaranhado de elementos torna ‘Religar’ diferente de tudo o que estamos habituados a ouvir da música brasileira. Lançado nos últimos dias de 2010, o álbum de estreia de Leo Cavalcanti foi a melhor surpresa do ano.

O som do cantor começa a ser definido como pop transcendental. Não se parece nem com os dos demais artistas do fértil cenário paulistano. Ou melhor, os pedaços se parecem com muita coisa, mas, por completo, sua música não se parece com nada. É fácil identificar características de temas indianos, fortes noções eletrônicas, um ar folk, o psychobilly como parente distante... Afinal, o que é isso?

Filho do cantor e compositor Péricles Cavalcanti, esse garoto de vinte e poucos anos apresenta um trabalho composto por arranjos rebuscados e poesia sofisticada. Multi-instrumentista, conseguiu alinhar ideias musicais inquietas. Antenado, compôs canções que permitem múltiplas e densas leituras. ‘Religar’ é um disco difícil de ser digerido. Exige atenção e ouvidos abertos ao que a cabeça humana é inábil para explicar ou compreender.

A mistura de conteúdos é um tanto bizarra: filosofia oriental, ciências holísticas, embates existenciais, crises sentimentais, necessidade de transformação. O grande risco de ‘Religar’ era ser um produto confuso, retalhado. Mas, felizmente, o cantor soube dosar bem seus assuntos favoritos e se apresenta como um guia excepcional pelo globo incômodo do disco.

Incômodo por ser uma espécie de terapia. Você pode se perguntar: e o que esse cara quer curar em mim? A resposta é simples: Leo Cavalcanti quer entrar naqueles problemas claros de todo ser humano e, no final das contas, tocar nas feridas até então indolores. O conjunto de ‘Religar’ cabe em inúmeros contextos. Quantos artistas já tentaram, sem sucesso, fazer o ouvinte pensar em questões pessoais relevantes? Esse disco tem todas as ferramentas para alcançar tal façanha sem soar chato ou inconveniente. É divertido, instigante. E (cuidado!) vicia.

O álbum conta com 14 faixas, todas inteiramente compostas por Leo, com exceção de ‘Chuvarada’, que é uma parceria com Tatá Aeroplano. A voz do líder da banda Cérebro Eletrônico se confunde com a de Leo Cavalcanti. Batidas cruelmente marcadas nos levam ao refrão revoltado: “Você já me tirou do sério. Toda vez que chove, eu espero. Sei que você não gosta do sol”. Mais que um dueto, é um duelo entre confidentes. Pode?

Tulipa Ruiz e Marcelo Jeneci (coincidentemente, donos do segundo e do terceiro melhor disco nacional do ano) também estão em ‘Religar’. O timbre charmoso de Tulipa dá manha ao amor desiludido de ‘Sem (Des)esperar’, música com melodias muito bem arquitetadas. O piano da não menos romântica ‘Acaso’ é de Jeneci. “Por um triz, já não sou o mesmo ser. Tudo o que sei é que o acaso é meu rei. Foi você quem mostrou, me fez saber que o amor não se prevê”.

Mas as melhores canções sobre o amor são ‘Vou Ser Você’ (a letra é simples, sutil e brinca com pequenas palavras engenhosamente) e ‘Inalcançável Você’ (uma libertação dos sentimentos que doem). Na primeira, um apaixonado que insiste em se transformar na própria paixão. Na segunda, um sujeito que pergunta: “Mas, se eu te disser que eu quero aprender a me amar e te amar também ao mesmo tempo, você teria tempo?”

Uma vinheta de 25 segundos, intitulada ‘Cantos Novos’, precede ‘Religar’. A faixa título tem as mais belas cordas do álbum, num clima que vai contra o ego velho que desenha sonhos, incitando mudança, evolução, contato. Completa o sublime momento de ‘Ouvidos ao Mistério’, que abre o disco: “Os seus conceitos já não servem mais, pois toda a teoria se desfaz. Quem sabe se mudar sua atenção, tirar da mente e pôr no coração”.

Se ‘A Tal da Paciência’ fosse cantada num idioma desconhecido, seria mais uma música fina e leve. Em manso e bom tom, Leo chuta os que querem devorar o mundo: “É uma ilusão querer pular vivência para ter sucesso sem antes errar”. Já ‘Medo de Olhar Pra Si’ alerta: “Se desvalorizar é o mesmo que se super-amar; ambos querem excluir o resto do mundo”. O trabalho é visto por um ângulo altamente crítico em ‘Soldado’, aberta com a seguinte frase: “Você pensava que era coisa pequena e deu na guerra que deu”. Para que exército você se alistou?

O mais incrível desse passeio terapêutico é que todas as frases de efeito são muito bem encaixadas, melodicamente falando. Os arranjos caprichados de ‘Dentro’ e ‘Dissabor’ contrastam com letras duras. O mesmo acontece em ‘Frenesi de Otário’, que emenda sentenças como “Baixa a sua bola, pois seu taco não ajuda o mundo a evoluir” e “A gente não quer mais saber do seu tão nato talento pra ter filme queimado” para chegar ao refrão mais animado do disco.

Além do próprio Leo Cavalcanti, a produção leva as assinaturas de Décio 7 e Cris Scabello. O ótimo repertório já vinha sendo testado há um bom tempo em pequenos shows. No palco, Leo Cavalcanti também surpreende. Os figurinos garbosos são pequenos detalhes, pois a impecável desenvoltura ao vivo prende a atenção do público sem grandes esforços. A voz marcante é incrivelmente segura fora do estúdio.

Pode parecer um elogio lugar-comum, mas Leo Cavalcanti é um cantor completo. Sobrepõe instrumentos, concebe sua música em camadas, reserva boas referências (de Fernando Pessoa a Frederico Garcia Lorca, passando pelo cinema de Glauber Rocha). Além da técnica de berço, desenvolveu um timbre bonito e diferente. A tirar pelo processo de produção do disco de estreia, o cantor sabe esperar para que seu trabalho ganhe vida própria.

É hora de “dar ouvidos ao grande mistério”.

  COTAÇÃO:   100        [DOWNLOAD]






 <<   ANTERIOR             INÍCIO   

Veja também:
  ANÁLISE   >   O processo de seleção e os critérios de avaliação.
  RANKING   >   Infográfico de cotações com o resultado da classificação.
  AMOSTRA COMPLETA   >   Conheça os 268 álbuns analisados neste ano.
  AS ESCOLHAS DO PÚBLICO   >   Vote nos seus álbuns favoritos.
  BÔNUS   >   As 50 melhores músicas nacionais de 2010.