

A impostora
Contaminada, Calcanhotto fez o melhor álbum da música brasileira em 2011
Porto Alegre, 1919. Aos cinco anos de idade, Lupi é expulso da escola por mau comportamento. Sempre distraído, passava a maior parte do tempo cantarolando, batucando na mesa e atrapalhando as aulas. O menino só retomou os estudos dois anos mais tarde.
O tempo passa e aquele guri inquieto se transforma num adolescente boêmio. Começa a compor no início dos anos 30. Algumas décadas depois, Lupicínio Rodrigues é visto como um dos artistas mais originais da música popular brasileira. Criador da “dor-de-cotovelo”, o compositor compartilhava desventuras amorosas com o público - todas, segundo ele, verídicas. Em depoimentos autobiográficos, Lupicínio achou uma explicação para a infância problemática. Ele dizia ser portador, desde pequeno, do micróbio do samba. “E quanto mais velho eu fico, mais ele se apega a mim e menos quer me abandonar”.
Adriana Calcanhotto também nasceu infectada pelo micróbio do samba. Gaúcha e branca, ela explica que não precisa ser do mundo do samba para carregar o micróbio em si. Junto com seu amadurecimento como cantora e compositora veio a certeza de que todas as suas músicas possuem algo de samba, por menos perceptível que seja. A ideia de criar um disco e registrar esse fato surgiu por acaso, enquanto fazia registros de repertório em estúdio. Nasceu O Micróbio do Samba, um dos trabalhos mais impressionantes de sua excepcional discografia.
Sem a mínima pretensão de ser sambista, Adriana Calcanhotto confessa que é uma impostora. O Micróbio do Samba não é um disco de samba. Segundo a compositora, o samba do disco é influência, e não gênero. Segundo a cantora, o samba é o motor propulsor, e não a meta de seu trabalho. Pode parecer uma afirmação arriscada, mas o que ela faz neste novo trabalho é diferente de tudo o que já foi feito na história do samba. Com essa modéstia e uma espontaneidade que é só dela, Calcanhotto nos apresentou em 2011 o disco mais importante e inovador do gênero nos últimos anos. E olha que a impostora queria apenas “sambar em paz”.
Claramente inspirado no estilo lupiciniano, o álbum é o primeiro totalmente autoral de sua carreira e traz uma dúzia de canções (confira os comentários para cada uma nas próximas páginas) executadas com base num trio instrumental: Alberto Continentino, com um contrabaixo tocado com os dedos; Domenico Lancelotti, com sua bateria sem pratos e a percussão; e a própria Calcanhotto, com o violão e, às vezes, com piano, cuíca e caixa de fósforo. Algumas faixas contam com participações especiais: Davi Moraes, na viola morna e no cavaquinho; Moreno Veloso, no prato e faca; Nando Duarte, no violão de sete cordas; e Rodrigo Amarante, que aparece com uma decisiva guitarra de quatro notas. Resultado: uma roupagem contemporânea jamais ouvida no mundo do samba. Mas tal ousadia instrumental não é desrespeitosa. Lupicínio certamente adoraria participar do grupo.
Outro lado surpreendente de O Micróbio do Samba diz respeito à verve da Adriana compositora, apontada por muitos como a melhor de sua geração. A mudança da perspectiva masculina para a feminina resulta em versos preciosos. Aqui a mulher não é passiva, comportada, muito menos resignada. Característica forte da artista, a percepção musical das palavras (nunca escrever sem os sons definidos) tem a simplicidade das letras como consequência. No final, percebemos a afirmação de diferentes mulheres em seus universos distintos.
A produção esmerada de Daniel Carvalho é outro ponto forte. O disco está uniforme e muito bem acabado. Luiz Zerbini e Fernanda Villa-Lobos conseguiram traduzir a permeabilidade estilística de O Micróbio do Samba na arte visual. A capa e o encarte do disco trazem círculos, confetes e serpentinas numa textura serena que sintetiza a sensação de conforto que vem do conteúdo musical.
Uma lesão no punho direito durante a gravação do disco impossibilitou Adriana Calcanhotto de subir ao palco agarrada com um instrumento, como sempre aconteceu. A cantora encarou o castigo como uma oportunidade de sair de sua zona de conforto e tirar proveito disso. Nas poucas apresentações que fez de O Micróbio do Samba - primeiro na Europa e, em seguida, no Brasil -, Calcanhotto e seus meninos foram merecidamente aplaudidos de pé. Os músicos conseguiram reproduzir a atmosfera do disco com precisão e a crooner finalmente se sentiu à vontade para sambar (sem tirar o pé do chão, por favor).
Ao explorar as diferentes possibilidades sonoras do gênero com coerência, criatividade e elegância, Adriana Calcanhotto fugiu completamente dos caminhos já trilhados, inaugurou uma nova forma de tratar o samba. “Eu não quero fazer e entender de samba. Eu quero continuar sendo uma impostora da música”.
Faixa a faixa: O Micróbio do Samba
(com vídeos do show Micróbio Vivo, lançado em DVD)
1 - Eu vivo a sorrir
Já cantava Cartola na clássica O Sol Nascerá: “A sorrir eu pretendo levar a vida”. Calcanhotto concorda com o mestre e dá a receita para aguardar o acaso, que pode estar inspirado.
2 - Aquele plano para me esquecer
Esqueça o plano para esquecer um grande amor. “Se bulir, vai ver ‘inda lateja”. A faixa é uma das que contam apenas com o trio Calcanhotto, Lancellotti e Continentino.
3 - Pode se remoer
Calcanhotto distorce sua guitarra como nunca. Versos vingativos para provocar a dor-de-cotovelo lupiciniana. “Pode se remoer, se penitenciar. Eu encontrei alguém que só pensa em beijar”.
4 - Mais perfumado
“Sai para o jogo com ar distraído e volta pra casa mais perfumado”. A cantora é pura ironia ao dar voz à mulher que não se deixa enganar pelo marido malandro.
5 - Beijo sem
Agora é a mulher que se entrega aos prazeres da vida noturna na Lapa. “Madrugada, sou da lira. Manhãzinha, de ninguém”. Calcanhotto dedica a música à Marisa Monte.
6 - Já Reparô?
Um dos melhores momentos do disco. Uma mulher fala para outra: “A sua nova namorada, morena, pode ser magrela, pode ser retinta. Porte de gazela, olho de leoa. Ser muito versada e hábil com a língua, do tipo que domina idiomas”. Esta namorada só tem um defeito... Será que ela já percebeu qual é? Tocado com os dedos, o contrabaixo de Alberto Continentino garante profundidade aos primeiros minutos da música. No final, Rodrigo Amarante surge genial com quatro notas de guitarra.
7 - Vai saber?
“Só porque disse que não me quer, não quer dizer que não vá querer”. Vestígios de esperança num amor não correspondido.
8 - Vem ver
A única letra com perspectiva masculina. O homem enche a mulher de mimos, faz promessas tentadoras e confessa: é um “escravo” de dia, mas à noite será “predador”.
9 - Tão chic
A proposta é “ter amor eterno até a quarta-feira”. Uma declaração açucarada. Destaque para o cavaquinho sutil e brilhante de Davi Moraes.
10 - Deixa, gueixa
Marchinha alegre que inclui um coro de bloco e o barulho de xícaras. “De bandeja eu te daria, se ao meu alcance, o lance da alegria, o presente deste instante”.
11 - Você disse não lembrar
Uma das mais cantaroláveis do disco. Atenção para a presença de Moreno Veloso, com prato e faca. “Se eu escolho acreditar, eu me firo de morrer”.
12 - Tá na minha hora
Uma despedida carnavalesca. Calcanhotto declara seu amor à Mangueira (“O meu coração é verde rosa”) e dá adeus sem promessas de voltar depois do carnaval. Domenico Lancellotti finaliza com um “laiá laiá” emocionante.
Contaminada, Calcanhotto fez o melhor álbum da música brasileira em 2011
Porto Alegre, 1919. Aos cinco anos de idade, Lupi é expulso da escola por mau comportamento. Sempre distraído, passava a maior parte do tempo cantarolando, batucando na mesa e atrapalhando as aulas. O menino só retomou os estudos dois anos mais tarde.
O tempo passa e aquele guri inquieto se transforma num adolescente boêmio. Começa a compor no início dos anos 30. Algumas décadas depois, Lupicínio Rodrigues é visto como um dos artistas mais originais da música popular brasileira. Criador da “dor-de-cotovelo”, o compositor compartilhava desventuras amorosas com o público - todas, segundo ele, verídicas. Em depoimentos autobiográficos, Lupicínio achou uma explicação para a infância problemática. Ele dizia ser portador, desde pequeno, do micróbio do samba. “E quanto mais velho eu fico, mais ele se apega a mim e menos quer me abandonar”.
Adriana Calcanhotto também nasceu infectada pelo micróbio do samba. Gaúcha e branca, ela explica que não precisa ser do mundo do samba para carregar o micróbio em si. Junto com seu amadurecimento como cantora e compositora veio a certeza de que todas as suas músicas possuem algo de samba, por menos perceptível que seja. A ideia de criar um disco e registrar esse fato surgiu por acaso, enquanto fazia registros de repertório em estúdio. Nasceu O Micróbio do Samba, um dos trabalhos mais impressionantes de sua excepcional discografia.
Sem a mínima pretensão de ser sambista, Adriana Calcanhotto confessa que é uma impostora. O Micróbio do Samba não é um disco de samba. Segundo a compositora, o samba do disco é influência, e não gênero. Segundo a cantora, o samba é o motor propulsor, e não a meta de seu trabalho. Pode parecer uma afirmação arriscada, mas o que ela faz neste novo trabalho é diferente de tudo o que já foi feito na história do samba. Com essa modéstia e uma espontaneidade que é só dela, Calcanhotto nos apresentou em 2011 o disco mais importante e inovador do gênero nos últimos anos. E olha que a impostora queria apenas “sambar em paz”.

Claramente inspirado no estilo lupiciniano, o álbum é o primeiro totalmente autoral de sua carreira e traz uma dúzia de canções (confira os comentários para cada uma nas próximas páginas) executadas com base num trio instrumental: Alberto Continentino, com um contrabaixo tocado com os dedos; Domenico Lancelotti, com sua bateria sem pratos e a percussão; e a própria Calcanhotto, com o violão e, às vezes, com piano, cuíca e caixa de fósforo. Algumas faixas contam com participações especiais: Davi Moraes, na viola morna e no cavaquinho; Moreno Veloso, no prato e faca; Nando Duarte, no violão de sete cordas; e Rodrigo Amarante, que aparece com uma decisiva guitarra de quatro notas. Resultado: uma roupagem contemporânea jamais ouvida no mundo do samba. Mas tal ousadia instrumental não é desrespeitosa. Lupicínio certamente adoraria participar do grupo.
Outro lado surpreendente de O Micróbio do Samba diz respeito à verve da Adriana compositora, apontada por muitos como a melhor de sua geração. A mudança da perspectiva masculina para a feminina resulta em versos preciosos. Aqui a mulher não é passiva, comportada, muito menos resignada. Característica forte da artista, a percepção musical das palavras (nunca escrever sem os sons definidos) tem a simplicidade das letras como consequência. No final, percebemos a afirmação de diferentes mulheres em seus universos distintos.
A produção esmerada de Daniel Carvalho é outro ponto forte. O disco está uniforme e muito bem acabado. Luiz Zerbini e Fernanda Villa-Lobos conseguiram traduzir a permeabilidade estilística de O Micróbio do Samba na arte visual. A capa e o encarte do disco trazem círculos, confetes e serpentinas numa textura serena que sintetiza a sensação de conforto que vem do conteúdo musical.
Uma lesão no punho direito durante a gravação do disco impossibilitou Adriana Calcanhotto de subir ao palco agarrada com um instrumento, como sempre aconteceu. A cantora encarou o castigo como uma oportunidade de sair de sua zona de conforto e tirar proveito disso. Nas poucas apresentações que fez de O Micróbio do Samba - primeiro na Europa e, em seguida, no Brasil -, Calcanhotto e seus meninos foram merecidamente aplaudidos de pé. Os músicos conseguiram reproduzir a atmosfera do disco com precisão e a crooner finalmente se sentiu à vontade para sambar (sem tirar o pé do chão, por favor).
Ao explorar as diferentes possibilidades sonoras do gênero com coerência, criatividade e elegância, Adriana Calcanhotto fugiu completamente dos caminhos já trilhados, inaugurou uma nova forma de tratar o samba. “Eu não quero fazer e entender de samba. Eu quero continuar sendo uma impostora da música”.

Faixa a faixa: O Micróbio do Samba
(com vídeos do show Micróbio Vivo, lançado em DVD)
1 - Eu vivo a sorrir
Já cantava Cartola na clássica O Sol Nascerá: “A sorrir eu pretendo levar a vida”. Calcanhotto concorda com o mestre e dá a receita para aguardar o acaso, que pode estar inspirado.
2 - Aquele plano para me esquecer
Esqueça o plano para esquecer um grande amor. “Se bulir, vai ver ‘inda lateja”. A faixa é uma das que contam apenas com o trio Calcanhotto, Lancellotti e Continentino.
3 - Pode se remoer
Calcanhotto distorce sua guitarra como nunca. Versos vingativos para provocar a dor-de-cotovelo lupiciniana. “Pode se remoer, se penitenciar. Eu encontrei alguém que só pensa em beijar”.
4 - Mais perfumado
“Sai para o jogo com ar distraído e volta pra casa mais perfumado”. A cantora é pura ironia ao dar voz à mulher que não se deixa enganar pelo marido malandro.
5 - Beijo sem
Agora é a mulher que se entrega aos prazeres da vida noturna na Lapa. “Madrugada, sou da lira. Manhãzinha, de ninguém”. Calcanhotto dedica a música à Marisa Monte.
6 - Já Reparô?
Um dos melhores momentos do disco. Uma mulher fala para outra: “A sua nova namorada, morena, pode ser magrela, pode ser retinta. Porte de gazela, olho de leoa. Ser muito versada e hábil com a língua, do tipo que domina idiomas”. Esta namorada só tem um defeito... Será que ela já percebeu qual é? Tocado com os dedos, o contrabaixo de Alberto Continentino garante profundidade aos primeiros minutos da música. No final, Rodrigo Amarante surge genial com quatro notas de guitarra.
7 - Vai saber?
“Só porque disse que não me quer, não quer dizer que não vá querer”. Vestígios de esperança num amor não correspondido.
8 - Vem ver
A única letra com perspectiva masculina. O homem enche a mulher de mimos, faz promessas tentadoras e confessa: é um “escravo” de dia, mas à noite será “predador”.
9 - Tão chic
A proposta é “ter amor eterno até a quarta-feira”. Uma declaração açucarada. Destaque para o cavaquinho sutil e brilhante de Davi Moraes.
10 - Deixa, gueixa
Marchinha alegre que inclui um coro de bloco e o barulho de xícaras. “De bandeja eu te daria, se ao meu alcance, o lance da alegria, o presente deste instante”.
11 - Você disse não lembrar
Uma das mais cantaroláveis do disco. Atenção para a presença de Moreno Veloso, com prato e faca. “Se eu escolho acreditar, eu me firo de morrer”.
12 - Tá na minha hora
Uma despedida carnavalesca. Calcanhotto declara seu amor à Mangueira (“O meu coração é verde rosa”) e dá adeus sem promessas de voltar depois do carnaval. Domenico Lancellotti finaliza com um “laiá laiá” emocionante.
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